Sofrimento psicológico dos portugueses no contexto da pandemia

De acordo com o relatório final do estudo SM-COVID19, 33,7% da população em geral e 44,8% dos profissionais de saúde mostraram sinais de sofrimento psicológico durante o período de confinamento. As percentagens são ainda mais elevadas entre quem esteve a tratar doentes com COVID-19.

Nos primeiros oito meses de 2020, foram vendidas mais de 6,5 milhões de embalagens de antidepressivos, um aumento de cerca de 5% em relação a 2019, segundo dados do Infarmed. O estudo SM-COVID19, promovido pelo Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge, em parceria com o Instituto de Saúde Ambiental da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa e a Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental, e financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia no âmbito do apoio “RESEARCH 4 COVID-19”, visou caracterizar a saúde mental e o bem-estar da população Portuguesa e dos profissionais de saúde entre maio e agosto de 2020, e permitiu identificar grupos mais vulneráveis e fatores preditores de sofrimento psicológico.

Ansiosos, deprimidos ou em stress pós-traumático. Assim estavam muitos dos 6079 portugueses que participaram neste inquérito dirigido à população adulta portuguesa e a profissionais de saúde. De acordo com o primeiro estudo epidemiológico nacional de saúde mental, publicado em 2013, a prevalência da ansiedade era de 16,5%, a mais prevalente de todas as perturbações psiquiátricas. Embora com um método distinto de recolha de dados, o estudo SM-COVID19 permitiu agora estimar que a ansiedade atingia 27% da população Portuguesa aquando do contexto de maior confinamento que Portugal viveu, como forma de combate à pandemia. Quanto à depressão e ao stress pós-traumático, as prevalências eram, em 2013, de 6,8% e 2,3%, respetivamente. Ora, 26,4% da população inquirida apresentava, na altura da recolha dos dados, sintomas de depressão e 26% de stress pós-traumático.

De um modo geral, quatro em cada 10 portugueses estava em sofrimento psicológico moderado a grave. Ser mulher, ter entre 18 e 29 anos, estar desempregado e ter baixos rendimentos é o perfil de quem apresentava maior sofrimento psicológico. A dificuldade em conciliar o trabalho com a vida familiar, assim como a perceção de falta de apoio social e familiar, são fatores que surgiram frequentemente associados a sofrimento psicológico ou a ansiedade e depressão. Por seu turno, ter um passatempo, ter uma rotina diária ou praticar atividade física surgiram como fatores protetores, estando associados a um risco diminuído de sintomas de ansiedade, depressão e perturbação de stress pós-traumático.

Um terço dos portugueses que participaram neste estudo apresentava níveis de resiliência elevados, nomeadamente os homens com mais de 50 anos, os empregados e os reformados. No que diz respeito às novas formas de organização do trabalho, suscitadas pela pandemia, 83% dos inquiridos considerou que essas novas formas de trabalho, em particular o teletrabalho, podem na verdade vir a ter um impacto positivo na sua vida.

Muitos profissionais de saúde na linha da frente exaustos

No dia 3 de março eram anunciados, pela Direção-Geral da Saúde, os primeiros casos positivos ao novo coronavírus. Quinze dias depois era decretado o Estado de Emergência e o país sujeito a um confinamento obrigatório. A pressão sobre o Serviço Nacional de Saúde (SNS) foi imediata, não apenas porque o número de casos ia subindo de dia para dia, mas também por estarmos perante um agente infecioso então mal conhecido. Para quem estava na linha da frente, o medo do desconhecido, o receio de se infetar ou infetar a sua família, os seus amigos ou os seus colegas, submeteu os profissionais de saúde a níveis extraordinariamente elevados de stress e de ansiedade.

Segundo o estudo SM-COVID19, quase metade dos profissionais de saúde estavam em sofrimento psicológico e 32,1% apresentavam níveis elevados de exaustão física e emocional (burnout). Aqueles que estavam na linha da frente, a tratar doentes COVID-19, foram os mais afetados, com um risco 2,5 vezes maior de sofrimento psicológico. O rendimento, o contacto regular e presencial com doentes, o tratar de doentes com COVID-19, o nível médio/baixo de resiliência, as dificuldades na conciliação trabalho-família, a perceção de falta de apoio social e familiar, a par com as preocupações face ao futuro, constituem, todos eles, fatores preditores de sofrimento psicológico nestes profissionais.

A perceção de apoio social e familiar por parte dos profissionais de saúde revelou ser um fator importante para a sua saúde mental. De facto, quanto mais apoiados se sentem, menor o sofrimento psicológico, o que significa que a perceção de apoio tem um efeito protetor significativo. Neste sentido, e apesar de o estudo não ter ido a este pormenor, as manifestações espontâneas, por parte da população, de apoio e reconhecimento pelo trabalho dos profissionais de saúde podem ter sido uma contribuição efetiva. O que se verificou, com os dados recolhidos é que ter um passatempo ou manter a rotina diária se associavam a menos sintomas de ansiedade, entre profissionais de saúde.

A doença vai, o sofrimento fica

Para além da população em geral e dos profissionais de saúde, o estudo SM-COVID19 procurou avaliar ainda o impacto na saúde mental daqueles que estiveram infetados ou eram suspeitos de estarem infetados. Sete em cada 10 pessoas nestas condições acusaram sofrimento psicológico e mais de metade apresentaram sintomas de depressão moderada a grave.

Das pessoas infetadas com o novo coronavírus que estiveram internadas, 92% referiram sintomas de ansiedade moderada a grave e 43% relataram sintomas de perturbação de stress pós-traumático. Para estas pessoas, não se tratava já do medo de virem a estar infetadas, mas sim de estarem infetadas e doentes, com um estranho vírus sobre o qual pouco ou nada se sabia. Internados, isolados das suas famílias e amigos, confrontavam-se diariamente com um ambiente dominado pelo barulho de máquinas e por vultos. Este contexto deixa entrever o sofrimento físico e psicológico que estas pessoas experienciaram, e que para quase metade foi traumatizante, e o impacto posterior na sua saúde mental, sobretudo num momento em que, já curadas, regressam a casa debilitadas pela experiência traumática para aí continuarem a sofrer.

É possível prevenir?

O estudo SM-COVID19 identificou percentagens elevadas de sintomas relativos a sofrimento psicológico, ansiedade, depressão, stress pós-traumático ou, muito em particular no caso de quem mantinha atividade profissional na primeira linha, burnout. O estudo identificou ainda um conjunto de fatores preditores associados à saúde mental e ao bem-estar. Conhecendo estes fatores, é possível desenhar planos de intervenção, dirigidos à população em geral e, em particular, aos profissionais de saúde e grupos diretamente afetados pela doença, que contribuam para um aumento da sua resiliência.

Resultante de uma parceria entre o Ministério da Saúde, a Fundação Calouste Gulbenkian e a Ordem dos Psicólogos, no dia 1 de abril de 2020 entrou em funcionamento uma linha de apoio psicológico com o objetivo de dar resposta a situações de «ansiedade, angústia e medo», bem como «reforçar o sentimento de segurança da população e dos cuidadores». Porém, segundo o estudo SM-COVID19, uma percentagem relevante de mulheres e de desempregados referiram não ter acesso fácil nem a linhas de apoio psicológico e emocional nem a apoio psicológico e emocional presencial. Importa investir ainda mais nesta dimensão de cuidados de saúde, muito em particular durante este período de crise prolongada que vamos vivendo.

O SNS dispõe agora de uma base de evidência sólida para a elaboração de recomendações que visem mitigar os problemas de saúde mental e promover o bem-estar psicológico em tempos de pandemia. Estas recomendações têm particular relevância contextual e temporal, dado que a pandemia de COVID-19 se mantém ativa (com mais novos casos positivos, diariamente, do que nunca) e, com o tempo de convivência com a mesma, o perfil traçado pelo estudo SM-COVID19 tenderá, na insuficiência de respostas efetivas de cuidados de saúde mental, a agravar-se.

ISAMB/FMUL


O relatório final do projecto SM-COVID19 está disponível aqui e o Policy Brief aqui.